Breves reflexões sobre o “foro privilegiado”: uma visão não midiática
- Frederico Aburachid
- 9 de dez. de 2018
- 4 min de leitura

A mídia e a sociedade em geral tem alardeado aos quatro cantos a necessidade de se por fim ao foro privilegiado. Acredita-se que o foro por prerrogativa de função, previsto na Constituição da República de 1988, proporcione a impunidade de agentes políticos.
Os posicionamentos veementes contrários ao instituto de alguns Ministros do Supremo Tribunal, membros do Ministério Público e de personalidades da mídia, tem colaborado de forma significativa para a difusão do tema.
Ao contrário do que muitos acreditam, contudo, o foro por prerrogativa de função não é uma “jabuticaba brasileira”. Foi inspirado em princípios processuais penais e constitucionais que visam justamente ao oposto do que é apregoado. Tem tradição histórica, estando presente em países como Áustria, Portugal, Espanha, dentre outros.
Mesmo no Brasil, válido dizer que, não fosse a atuação relativamente célere da Suprema Corte, se comparada às instâncias ordinárias (1a e 2a instâncias), a condenação da maioria dos agentes políticos denunciados por crimes de corrupção e lavagem de dinheiro, como ocorrera na emblemática AP 470 (leia-se Mensalão), não teria ocorrido em tempo hábil.
Diga-se de passagem que uma das questões de ordem suscitadas da tribuna do Supremo Tribunal, por ocasião do julgamento da prefalada AP 470, tinha como objetivo afastar a competência daquela instância especial e remeter os autos à 1a instância. Através de tal artifício, oportunizar-se-iam os inúmeros recursos que a lei processual admite e maior morosidade na apreciação da matéria.
A título de curiosidade, durante o período do regime militar, uma das medidas adotadas através do Ato Institucional no 05, foi a supressão do foro por prerrogativa de função. Bem ou mal, a medida submeteu inúmeras autoridades ao controle jurisdicional por diferentes instâncias.
TOURINHO FILHO ensina-nos que o “foro privilegiado” seria, na verdade, “uma garantia, de elementar cautela, para amparar, a um só tempo, o responsável e a Justiça, evitando, por exemplo, a subversão da hierarquia, e para cercar o seu processo e julgamento de especiais garantias, protegendo-os contra eventuais pressões que os supostos responsáveis pudessem exercer sobre os órgãos jurisdicionais inferiores”. [1]
Nesse sentido, o “privilégio” assegura o cumprimento da função jurisdicional, de forma isenta e imparcial, à medida que o julgador possui, em tese, maior força para afastar pressões políticas locais à que estaria sujeito nas instâncias ordinárias. Além disso, mitiga-se o risco de desvio de finalidade da função judicante, especialmente durante períodos eleitorais ou em virtude de conflitos dessa natureza.
Como bem cita ORLANDO BELEM, o Supremo Tribunal Federal, por ocasião do julgamento da ADI 3289, teve oportunidade de posicionar-se sobre a matéria, convindo a sua referência aos argumentos apresentados pelo Ministro Gilmar Mendes: A prerrogativa de foro, no caso, (a) seria um reforço à independência das funções de poder na República ex vi de razões de ordem política-constitucional, (b) justificada pela diferenciação de tratamento entre agentes políticos em virtude do interesse público evidente e (c) que referida garantia se coaduna com a sociedade hipercomplexa e pluralista, a qual não admite um código unitarizante dos vários sistemas sociais.[2]
Conforme se extrai de artigos publicados nas redes sociais, a ONG TRANSPARÊNCIA BRASIL posicionou-se contrária ao fim do “foro privilegiado”. Em sua nota, repudia a proposta de extinção do instituto: “Não havendo privilégio de foro, os processos contra esses políticos correrão na primeira instância, seja nas Justiças estaduais, seja na Justiça Federal. Se condenados, recorrerão aos tribunais de Justiça ou aos tribunais federais. Se os recursos forem negados, recorrerão ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) ou ao Supremo Tribunal Federal (STF). Em outras palavras, se os processos nos tribunais superiores já demoram anos e anos para se concluírem, levá-los para a primeira instância fará aumentar ainda mais esse tempo.”[3]
Outro aspecto absolutamente interessante acerca do “foro privilegiado” é a qualificação do órgão judicante. À toda evidencia, a instância julgadora carrega em si mesma valores que a credenciam para proferir decisão de maior envergadura, atentando-se para aspectos que ultrapassam a esfera privada dos litigantes. Trata-se de órgão colegiado, formado por juristas reconhecidamente experientes, com tempo necessário no mundo da vida e do direito, para proferir decisões com a carga axiológica que a sociedade exige.
A despeito de suas características positivas, é sabido que a reprimenda social contra o instituto não é sem motivos. O primeiro deles decorre do princípio da isonomia. Em uma leitura meramente superficial, um Estado Democrático não deveria tolerar juízos distintos para “iguais”. A distinção apenas em virtude de funções públicas exercidas não justificaria o foro especial e aproxima-se da ideia de favorecimento.
Contra tal argumento, frise-se a prevalência do interesse público e a defesa da independência do órgão judicante. Outras regras de competência, tanto sobre a matéria, quanto acerca da territorialidade, são utilizadas no processo civil e penal, para que a atuação judicante não seja prejudicada. Preserva-se, nesse caso, a própria função jurisdicional.
Outro aspecto relevante, contrário ao foro privilegiado, refere-se à possibilidade de desvios e “manipulações” provocadas pelo próprio acusado. Trata-se da hipótese, por exemplo, de um parlamentar renunciar ao cargo ocupado apenas para afastar a competência da instância especial. O fato há de ser reprimido pelas normas processuais.
O Brasil é um país de extensão continental. Formado por mais de 5.000 municípios. Cada Estado possui características regionais, assim como forças de influência e pressão. Um foro especial para o julgamento de determinadas autoridades públicas torna viável o exercício das funções estatais em paralelo e de forma assintomática à pressão popular.
Como visto, há aspectos positivos e negativos que o direito brasileiro precisa enfrentar. A leitura é bem mais profunda que aquela exposta nas capas de jornais e pela mídia em geral.
À toda evidência, o instituto precisa sofrer modificações diante da realidade brasileira e de seu sistema processual. A ideia de um foro especial para prefeitos, vereadores e/ou parlamentares em geral, parece-nos equivocada do ponto de vista principiológico. Deve-se buscar a redução de sua “amplitude” até por respeito à razoabilidade. Por outro lado, há funções que justificam claramente a medida, evitando conflitos na ordem processual e decisões contraditórias por diferentes juízos.
Trata-se de um instituto complexo e revolve valores sociais. Não pode ser interpretado como uma ferramenta odiosa, mas um remédio processual cuja dose precisa ainda ser melhor apurada para o bem do regime democrático brasileiro.
ABURACHID, Frederico José Gervasio. Breves reflexões sobre o “foro privilegiado”: uma visão não midiática sobre o tema. Belo Horizonte, 2018.
[1] TOURINHO FILHO, Código de Processo Penal comentado, v.1, p.215
[2] BELÉM, Orlando Carlos Neves. Do Privilegiado à Prerrogativa de Função, Rio de Janeiro: PUC, Departamento de Direito, 2008.
[3] ALMEIDA, Amanda. “Defesa ao foro privilegiado”. Correio Braziliense, 12/07/2013, Caderno “Política”, p. 3
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